A Igreja carrega em si uma tensão que não podemos ignorar: luz e sombra convivem no mesmo corpo. De um lado, a força de um anúncio que atravessa os séculos há dois mil anos e que os fiéis reconhecem como caminho necessário para a salvação; de outro, o peso de comportamentos e dinâmicas que lembram mais as lógicas de uma seita do que as de uma comunidade de fé. É nesse espaço de contradição que muitos católicos hoje se encontram, suspensos entre a beleza libertadora do Evangelho e o sufocamento de um julgamento que parece não dar trégua.
Não é fácil dizer isso em voz alta, porque toca em um nervo exposto. E, no entanto, basta observar com um mínimo de honestidade o que acontece todos os dias, dentro de paróquias, movimentos e grupos eclesiais, para perceber que uma parte significativa da vida comunitária gira em torno do julgamento dos outros, e não do anúncio do Evangelho.
Foi o que aconteceu também nas últimas horas. Um sacerdote, apenas para financiar e favorecer as atividades em que está engajado, usou as redes sociais para patrocinar um produto. Em poucas horas, em torno daquele gesto, desencadeou-se um processo coletivo: prints compartilhados, comentários indignados, acusações de incoerência — até transformar um fato mínimo em um caso de tribunal. Não um tribunal eclesiástico, mas um tribunal paralelo, alimentado pelo boca a boca, pelas redes, pela necessidade de vigiar e punir.
Qualquer gesto que um padre faça nas redes sociais, sempre haverá alguém pronto para reclamar: confrades ou leigos, pouco importa. Faz uma piada durante a homilia e logo surgem as acusações; veste a batina e é criticado por “desfilar”; não a veste e é acusado de não se vestir como deveria. Em suma, qualquer escolha vira alvo de críticas.
É claro: se um padre dança diante do altar ou profana a Eucaristia, a questão é grave e é justo indignar-se. Mas é bem diferente quando a um sacerdote se nega até mesmo a possibilidade de viver sua própria vida com serenidade, sem o medo constante de ser observado, julgado e comentado. Aqui, evidentemente, algo não funciona.
Essa é a parte mais visível. Mas a raiz é mais profunda. O mesmo mecanismo se aciona diante de uma foto de um padre na academia, de uma story publicada com um(a) amigo(a), de uma frase interpretada como ambígua. Há até pessoas reprimidas que, com uma obsessão digna de um detetive particular, chegam a pesquisar no Google o local exato onde alguém estava no momento da publicação de uma foto, criando perfis falsos para perseguir. É um modo de viver típico de quem não é realizado e que nos dá a imagem de uma fé que não tem nada de evangélica. É controle social, voyeurismo espiritual, vigilância recíproca.
O mecanismo do julgamento: psicologia e necessidade de segurança
Os psicólogos já explicaram várias vezes por que isso acontece. Erik Erikson lembra que o ser humano, para se sentir seguro, precisa de identidade. Em contextos comunitários, essa necessidade muitas vezes se traduz em rigidez: para defender o próprio papel dentro do grupo, observa-se e julga-se quem não se enquadra nos padrões. O julgamento, portanto, não serve para defender a Deus, mas para proteger o próprio e frágil senso de pertença.
A teoria da dissonância cognitiva de Leon Festinger oferece outra chave de leitura. Se eu não consigo viver plenamente as normas religiosas, se tropeço e falho (como acontece com todos), julgar os outros se torna um mecanismo para aliviar meu sentimento de culpa: “Eu não sou perfeito, mas pelo menos não sou como ele”. Assim, o julgamento vira um anestésico para a consciência.
René Girard, com sua teoria do bode expiatório, acrescenta um ponto decisivo: as comunidades, para manter sua unidade interna, precisam identificar um culpado. Quem “erra” torna-se o alvo sobre o qual se projetam as tensões do grupo. É por isso que um padre que posta uma foto na academia ou uma freira que escreve um pensamento “fora dos padrões” rapidamente se tornam objeto de suspeita e zombaria: não pela gravidade do ato, mas porque servem ao grupo para reforçar sua identidade.
Uma fé que desliza para a ideologia
Teólogos e santos não deixaram de alertar para esse perigo. Joseph Ratzinger, já nos anos 1960, em Introdução ao Cristianismo, advertia que a fé pode facilmente se transformar em ideologia: um sistema de pertença mais do que um encontro com o Deus vivo. Quando isso acontece, a atenção deixa de estar na verdade do Evangelho e passa a se fixar na defesa de uma identidade fechada e obsessiva.
Henri Nouwen, com sua fina sensibilidade espiritual, observava que o julgamento é muitas vezes uma maneira de evitar o confronto com a própria vulnerabilidade. É mais fácil apontar o dedo para os outros do que deixar-se olhar por Deus em nossa própria fragilidade. Julgar torna-se, então, uma defesa. Mas uma defesa que trai o Evangelho.
Não surpreende que o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 94), tenha falado de “mundanidade espiritual”: uma forma de religiosidade que, em vez de abrir-se ao Evangelho, concentra-se na imagem, no controle, na exibição de ortodoxia. Uma mundanidade que “em alguns casos assume a aparência de um fervor religioso”, mas que na realidade esconde a necessidade de poder e de autoafirmação. É justamente por isso que certos ambientes — onde de dia se ostenta devoção entre rendas litúrgicas e à noite se buscam rendas de outra natureza — acabam sendo aqueles que mais dedicam energia a julgar e difamar os outros.
A sociologia do controle religioso
Estudiosos da religião notaram que essas dinâmicas se acentuam nos momentos de crise. Peter Berger mostrou como, em sociedades secularizadas, as comunidades religiosas reagem fechando-se: quanto maior o medo de perder relevância, maior a rigidez do controle interno. Em outras palavras: quanto mais a Igreja perde espaço na sociedade, mais se multiplicam dentro dela os “guardiões da pureza”.
Zygmunt Bauman, por sua vez, lembra que o julgamento é um substituto de segurança: julgar o outro me faz sentir estável, protege-me da incerteza do meu caminho. Mas essa estabilidade é uma ilusão: ela se sustenta na condenação alheia, não na liberdade evangélica.
Dinâmicas de seita
O resultado está diante de todos. Uma parte da vida eclesial cada vez mais se assemelha a uma seita:
há um dentro e um fora, com linhas de demarcação cada vez mais rígidas;
há um controle recíproco, alimentado por murmurações, prints, perfis falsos, compartilhamentos, calúnias e difamações, boatos;
há um mecanismo de vigilância que transforma a comunidade em um lugar de medo, e não de liberdade.
Quem está dentro encontra nisso um sentido de pertença: “nós somos os verdadeiros guardiões da fé”. Mas quem olha de fora percebe apenas um clima sufocante, distante anos-luz do anúncio de Jesus. Não por acaso, muitos cristãos autênticos se afastam justamente dessas comunidades, mais interessadas em defender a si mesmas do que em testemunhar a liberdade do Evangelho.
E, se prestarmos atenção, essas dinâmicas se agravam sobretudo nos movimentos religiosos e comunidades, verdadeiras “subcategorias” do mundo eclesial, onde a lógica de se preservar e se defender do exterior torna-se quase uma regra de sobrevivência. Focolarinos, Neocatecumenais, Comunhão e Libertação, Novos Horizontes, Opus Dei: a lista poderia continuar. Mas o mecanismo é o mesmo. Quanto mais se fecha em comunidades pequenas, mais essas dinâmicas de controle e julgamento se acentuam, até se tornarem sufocantes.
O paradoxo cristão
Há um paradoxo gritante. O Evangelho nos apresenta um Deus que não julga, que acolhe, que liberta. “Não julgueis, para não serdes julgados” (Mt 7,1) é uma das frases mais claras de Jesus. E, no entanto, justamente na comunidade que leva o seu nome, multiplicam-se os pequenos e grandes tribunais paralelos.
Assim, o cristianismo, que deveria ser espaço de misericórdia, torna-se um sistema de controle; o lugar da liberdade do Espírito se transforma em uma gaiola de vigilância. É nesse descompasso que se joga grande parte da atual crise da Igreja: não é o Evangelho que afasta, mas sua traição cotidiana, mascarada de zelo e ortodoxia.
Uma pergunta aberta
Talvez a verdadeira pergunta que devêssemos fazer seja esta: que imagem de Deus transmitimos quando vivemos na lógica do julgamento e da vigilância?
Um Deus que espia os stories de seus filhos, que faz prints de seus erros, que divulga suas falhas como aviso para os outros? Um Deus que julga cada ação, até as mais leves? Ou o Deus do Evangelho, que “não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo”?
A resposta é evidente. Mas o caminho para voltar a vivê-la ainda está todo por ser percorrido.
d.G.V.
Silere non possum